20.10.11

Este eu que ora sou pode até jurar-te amor eterno...


O texto você pode já conhecer, mas as imagens são maravilhosas. Veja-as em tela cheia. São dos filmes Migração Alada de Jacques Perrin e Planeta Sagrado, de Jon Long / Robert Redford.




Segundo Descartes, a coisa mais bem distribuída no mundo é o bom senso: ninguém acha que tem pouco. Nem eu. Nem você. Nem aqueles que pensam diferentemente de nós dois.



NO ARMAZÉM DE MEU PAI


Varrendo os ciscos, os papéis, as tampinhas de garrafa, todo dia, eu aprendi a amar a limpeza, mas não de forma neurótica. Varrendo, aprendi a ter disciplina. Eu só tinha nove ou dez anos, mas já varria com método, coreografando uma espécie de dança com a vassoura, meditando, desenhando na poeira coisas que combinassem com as irregularidades daquele chão. Varrendo, eu planejava a minha vida. Varrendo ciscos geométricos por sobre os cacos coloridos da cerâmica vermelha eu construía uma louca arquitetura de mistérios insondáveis. E então chegavam clientes querendo talvez meio quilo de açúcar. Ou duzentos gramas de mortadela. Às vezes um pão sovado. Não importava: em qualquer das hipóteses, antes de atendê-los, eu me transformava no Balconista do Olimpo — e os atendia sempre sorrindo. Ou seja, varrendo e vendendo, eu aprendi a perceber padrões. A interpretar as circunstâncias. Varrendo e vendendo, eu aprendi a ser cigano, a ler as mãos — e ver a Sorte.


Ele era o símbolo da autoridade, e eu — da rebeldia. Nenhum de nós dois gostava de repartir a liderança. Eu não nasci pra ser segundo, e ele abominava a ideia de não ser o primeiro. Então, quando fiz dezessete nos separamos: eu vim estudar filosofia, e ele continuou um ótimo comerciante. Foi então que começamos realmente a conversar. Depois, com o tempo, nos tornamos amigos. Hoje, somos amantes.




O AMOR É UM ALIMENTO


Ao sugar o seio da minha mãe, eu não apenas mamava: eu já calculava a área total do mamilo, a vazão do leite por segundo, a temperatura da sua pele em contato com meus lábios, a posição mais adequada da minha língua, o movimento sensual da minha boca, a intensidade da sucção, o tempo perfeito da própria saciedade, o pulso do coração, a respiração poética do espírito santo, e o prazer que era sentido por mim, e por ela. Tudo isso excitava o meu neo-córtex cerebral, onde as emoções mais profundas se colocam de uma vez por todas. Mas, confesso, antes do leite, antes do cálcio, antes das vitaminas — eu precisava mesmo era do amor que ela me dava. Este foi o meu primeiro e mais querido alimento: o amor.

Desde criança, portanto, eu me alimento de mulher e liberdade, de loucura e matemática, de risco e paixão, de amor e poesia. Acontece que depois, pouco a pouco, fui trocando o leite por vinho branco. E agora vivo sempre em busca de novos seios.






MEU JEITO DE ESCREVER


Estou aqui, ao lado de um pezinho de lírio e tomando um copo de vinho vermelho. Solto e protegido como fosse uma simples formiguinha. Ronronando sensual como os gatinhos de Joyce Ann. Livre como um pássaro livre. Zen. E então fico pensando que meus leitores talvez nem façam ideia de quanto cuidado, quanto tempo, quanta energia, quanto amor — quanta loucura — eu preciso para escrever uma frase assim:

Liberdade a gente tem que ter de sobra, pois, se dela um dia nos roubarem um pedaço, ainda nos resta o suficiente para que a vida não se torne uma desgraça.

Demorei cerca de duas horas para escolher o tema de hoje e as palavras que me parecem certas. Para que houvesse cadência, pulsação — e alegria na leitura. E rima. Mas não rima pobre, formal. Eu busco uma rima quase imperceptível. Às vezes, apenas conceitual, como em de sobra e bastante, suficiente. Às vezes, rima sonora, como em pedaço e desgraça. Também me preocupo, nos meus textos, com que a língua não se enrole, se lidos em voz alta. Mesmo subvocalizados, não pode haver tropeços na boca de quem me lê. Até pontuações eu às vezes suprimo visando pausas que não quero. Faltou dizer, mas teu subconsciente certamente já percebeu, que nas sílabas tônicas daquilo que eu preciso — cuidado, tempo, energia, amor e loucura — temos todas as vogais, em ordem crescente: a e i o u. Enfim, eu educo os meus textos como se fossem filhos. Eu os refino e aprimoro, amorosamente, para que dancem no céu da tua boca e mereçam tocar-te o coração.



Além da vida e do amor, há um jogo que também me agrada: é aquele que acontece quando trago para a tela do computador uma poesia que já escrevi. E fico jogando com as palavras e o seu sentido. Passo a noite quase toda mexendo com elas, jogando com elas, acariciando-as, beijando-as, lambendo-lhes as partes mais íntimas, amando-as livremente. Mudo-lhes algum sentido, dou-lhes forma nova, pinto-as de azul. Enriqueço rimas em prol do amor, coloco consoantes de apoio, quebro a estrutura da frase, abandono as regras antigas, invento outras mais gostosas, escrevo, apago, escrevo, pinto, sinto e danço. Se por acaso vou ganhando, vibro e quero sempre ganhar mais. E se perco, a cada jogada sublime que faço, maior é o meu ânimo para jogar de novo, recuperar aquilo que perdi. De qualquer forma, passo a noite toda jogando, em todos os sentidos. Vem a madrugada e já começo a brilhar, metáfora de lux. Então, exaustos de tanto amor, os dois nos vencemos: o poema ganhou de mim, e eu com certeza o venci.



Também gosto de pensar que, se algum dia eu ficar famoso, meus blogs e livros serão valiosos e os leitores ficarão perplexos com tanta criatividade... Serei um best seller. Meus saltos profundos serão louvados. A defesa da liberdade virará moda. Meus biógrafos vão vibrar com “tão extrema sensibilidade”. Traduzido em várias línguas, escreverão teses sobre mim. A Faculdade de Letras da USP vai criar um curso sobre a literatura de Edson Marques. Mas se eu, ao contrário, acabar anônimo, casado, cheio de filhos, e pobre — ou abandonado num manicômio qualquer — todos que lerem estas mesmas linhas (que meu ego acha belíssimas), certamente pensarão: Nossa... como o coitado perdia tempo escrevendo essas bobagens...

Como se vê, tudo é relativo.



O texto acima foi escrito em 1998, e ainda tem alguma validade. Entretanto, como sou um garimpeiro de verbos incendiados, só gosta de me ler quem já tem fogo e não se espanta. Mas se eu primeiro não tornar as emoções em gostosura, não serei capaz de abrir meu coração para ser lido com ternura por você. Por isso, só me mostro inteiro após o meu encanto, e só te dou estas palavras depois que as refino. Aliás, se eu primeiro não polir as minhas pedras preciosas com amor e liberdade, como poderia eu querer trocá-las por essa tua tão amável luz diamante?




POR QUE VOCÊ CHUTA O AGORA?


A vida está por um fio. Tua casa tá pegando fogo, teu amor se despedaça, tua hora está chegando... Não a hora da morte biológica, que pode até demorar, mas a hora da verdade, a hora de virar gente, a hora de assumir o comando. A hora de tomar consciência. A cebola da vida está descascando, inexorável, aí, ao teu lado; o leão do tempo, feroz, rugindo no teu cangote — e você não reage. Nem se mexe. Acontece que há conclusões às quais você tem obrigação de chegar, hoje: Ou você se salva — ou você se fode. Não há meio termo.

É isso que eu quero dizer novamente hoje, mas você teima em não me ouvir. Parece que todos temos uma certa tendência neurótica em deixar as coisas como estão, em salvar as aparências, em manter as estruturas — mesmo que apodreçam. Quase todos temos uma enorme preguiça de agitar as circunstâncias. Propendemos a deixar tudo como está, embora vivamos fazendo promessas de mudar o mundo. Como disse Goëthe no Fausto, "a quem persiste na Esperança ainda resta a Salvação". Mas você sempre deixa pra depois. Você chuta o agora. Você adia o instante. Você posterga o hoje.
Você pensa que vai viver mil anos...
Mas não vai, não.
Nem eu.



DESAPEGO


Eu morava numa casa deslumbrante. Tinha até cachoeira na piscina e palmeiras no quintal. Meus amigos ficavam perplexos, e eu lhes dizia:
— Não se impressionem: a casa não é minha.

Depois — ou antes, já nem me lembro — eu morava num ranchinho de sapé lá no sul do Paraná. Ao lado de um riozinho, meia-água, três cômodos, as roupas penduradas em barbantes, chovia dentro. Meus amigos ficavam perplexos, e eu também lhes dizia:
— Não se impressionem: a casa não é minha.
Hoje eu moro à luz da Lua — e continuo dizendo:
— Não se impressionem: a Lua não é minha.



A VIDA É UM JOGO


Todo jogo tem suas regras. E o que é a vida, se não um jogo? O melhor deles — e o mais gostoso de ser jogado. Acho que vou reabrir este capítulo como se reabrisse a garrafa do vinho francês que acabei de buscar. Tomo então um gole redondo do Baron D’Arignac, rouge, respiro fundo — e ataco minhas lembranças como se fosse um leão. Às vezes você precisa pôr uma pedra enorme no próprio sapato para sentir-se vivo. Quem só pisa em espumas não cria coragens. Quem só vê o macio não sabe a dor. Houve um tempo em que tinha um prego no meu sapato. Todo dia eu batia nele com o cabo de uma escova. Meia hora depois o desgraçado já furava de novo meu calcanhar, o que me fazia passar o dia inteiro mancando. À noite, quando chegava da USP, eu repetia a operação, sem nunca ter tomado as providências efetivas. Assim como em tudo na vida, quando não tomamos providências efetivas, sofremos as consequências. Mas, depois de uns quinze dias e de muito incômodo, criei vergonha e comprei um sapato novo, preto, numa loja empoeirada e decadente da Rua Barão Duprat, perto do Mercado Municipal. Foi um verdadeiro alívio. Como se vê, às vezes a gente é muito mais sem-vergonha do que pobre. Sofre mais por burrice do que por falta de dinheiro. Aliás, o ser humano quase nunca é racional.


A burrice é igual para todo mundo, mas a burrice própria é muito pior do que a burrice alheia.


E a esperança é um armadilha.
Fatal.



Portanto, este eu que ora sou, num enorme, num desesperado esforço de imaginação, pode até jurar-te amor eterno. Mas, como esperar — como exigir — que o outro eu que amanhã certamente serei cumpra, eternamente, o que promete este eu que ora sou?


Espero que Deus te proteja na minha ausência.


Continua.